Pular para o conteúdo principal

Pós-abismo II

Ela seguiu, olhava à volta desconhecendo todos os caminhos, escolheu o mais bonito para combinar com seu vestido de flores e renda. O chão macio, amortecia os passos que ela dava tão delicadamente pela estrada. A mangueira lá na frente ofereceu-lhe uma manga deliciosa, avermelhada, doce e suculenta e seus galhos e folhas a protegeram do sol que ofuscava sua visão. Parou por tempo sem conta e depois seguiu caminho, em direção a algum lugar que ela não sabia. Passou por festas e chás e reuniões e de cada um dos lugares que passava levava alguma lembrança e deixava um pouco de si pelo caminho, partes sua que já não mais servia. Virava volta e meia e mudava a rota que escolhia à medida que sentia ser o melhor, sempre passando por estradas bonitas e calmas. Passou por jardins, labirintos e encruzilhadas. De vez enquando parava para conversar com os transeuntes, ler um livro ou mesmo ficar ali, parada, sem nada para fazer, só observando. Chegou a uma cidadezinha calma, com umas pessoas tranquilas que a faziam sorrir, escolheu ficar ali por tempo indeterminado. Os dias foram passando e aquelas pessoas se tornaram família, carinho, cuidado. Os anos passaram e ali, naquela cidadezinha, ela fincou suas raízes. Em uma noite enluarada, a cidadezinha toda parou. A chegada de um homem que ela ansiava por conhecer. Um tempo antes dela chegar na cidade, um homem foi em busca do mundo e deixou a cidade na saudade. Volta e meia cartas chegavam dando notícias de seu paradeiro e de sua vida, mas ele nunca voltava, entretido com tantas outras coisas e tantas outras vidas. Finalmente ela conheceria o tão querido homem. Vestiu-se de um vestido azul turqueza lindo, os cabelos presos em um coque desarrumado de fios caindo por sobre seu rosto, a sandália prateada ajustada a seus pés, os brincos claros como a lua combinados ao colar caído sobre seu peito nu e o anel de pedra transparente. A maquiagem deixava seu rosto mais nítido e vibrante e os olhos contavam de amores e denunciavam sua ansiedade. Desceu a rua em direção à praça e já podia ouvir de longe a música tocando, comemorando a volta do homem estranho. Sentiu que uma pontada de calma e inquietação se misturavam como se algo inesperado fosse acontecer, mas não sabia o que era. A muito havia esquecido de seu dom intuitivo, de como o cheiro das coisas eram diferentes de acordo com a situação. Acostumou-se com o rotineiro e esquecera-se do sentimento do desconhecido. Foi então que ao chegar do outro lado da rua, já em frente à praça ela notou um homem bonito de costas, parecia-lhe conhecido, alguma coisa de familiar, de apaixonante. Reconheceu-o imediatamente, mesmo de costas, ele a empurrara no abismo, ele a tinha conduzido por estradas que não conhecia e deixou-a assustada e triste. As lágrimas tentavam descer por sobre seu rosto, mas ela era mais forte, anos de caminhada sozinha a fizeram assim, ele a ensinara bem a aguentar dores insuportaveis e a enfrentar desafios dos mais variados. Não fazia diferença, estavam ambos na mesma cidade e ela não poderia deixar de acolhê-lo, aquelas pessoas que ela tanto amava o amavam também, como um dia ela o amou, como secretamente ela ainda o amava. Respirou fundo e pôs-se a andar da forma mais calma possível, não queria que percebessem o nervosismo que pesava suas pernas, que disparava seu coração. Parou em frente a um banco e sentou, conversando com a menina vestida de renda e flores, como ela se vestira também um dia. De repente, seus olhos não aguentaram e dirigiram-se a ele e foram pegos de surpresa, ele a olhava de longe e sorriu um sorriso tão bonito, tão real que ela não pode deixar de retribuir e segurar para não demonstrar que aquele sorriso quebrara todas as defesas que ela havia feito. Percebeu isso e se prometeu, naquele exato momento, que o evitaria o máximo possível para não cair na tentação de sofrer novamente como havia sofrido a tempos atrás. Como não podia deixar de ser, sua amiga mais íntima procurou sua mão -"venha, quero que o conheça, você vai adorá-lo"- impossível fugir. Se cumprimentaram e ficaram ali, na mesma roda, ela evitando seu olhar, ele procurando chamar sua atenção o máximo possível. A festa inteira ficaram um ao lado do outro, ela tentando se desvencilhar, ele tentando se aproximar. Sentia-se numa teia de aranha, não tinha saída, estava presa e quanto mais tentava sair da teia, mais presa e enrolada ficava. Percebeu que não tinha mais jeito, parou de tentar fugir e ficou a observar as pessoas a sua volta, procurando distrair sua mente. Da festa, foram para o bar da cidade, queria sentar-se o mais longe possível, mas foi a última a sentar e nessa brincadeira, sua cadeira era justamente a do lado da dele (o destino prega peças às vezes, que ninguém entende, pensou). A ansiedade tomava proporções descomunais e agora já não era possível escondê-la, ela não sabia o que fazer, tudo que pensava era "porque você foi embora, porque você me deixou, porque você voltou e porque você está aqui ao meu lado, tentando chamar minha atenção? Não vê que eu morreria por dentro se você partisse? E você vai partir, você sempre parte..." Tomava um drinque e outro, tentando disfarçar, mas não adiantava, ele percebeu, insistiu, sabia o que queria. Sua amiga olhou o horário e pediu para que eles a esperassem no bar, ia ali buscar o irmão na praça. Só podia ser brincadeira, ela não queria ficar sozinha com ele, sabia o que sentia e sabia no que ia dar tudo aquilo, não tinha como fugir, a teia estava bem feita, pronta para qualquer tentativa de escape. Olhava para os lados em uma tentativa frustrada de fingir não ver o que estava acontecendo, mas ele foi mais esperto, prendeu sua atenção em um piscar de olhos e então a perdição se fez presente, ela sabia que se debater não adiantava mais, nem queria mais fazê-lo e ficou contando os segundos para que ele a beijasse de uma vez e a fizesse esquecer por um minuto que o mundo existia como tantas outras vezes o fez. E assim, a noite se alastrou e o beijo dele trouxe uma paz inexplicável, como se nada fosse tão certo naquele momento. O medo já não mais paralizava, mas dava asas para que ela pudesse escolher seu próximo passo. Ela podia perder-se amando-o ou podia amá-lo pacificamente como uma árvore no jardim, esperando seu pássaro preto voltar para dormir em seus galhos. Escolheu a segunda alternativa. O futuro? Não mais a amedrontava, como tantas outras vezes, escolheu o caminho mais bonito, mais tranquilo. Naquele dia, o caminho levava a ele.



Paula Cristina.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Ao léu

A noite escura, os passos largos, o banco da praça escondido pelas sombras, a cerveja numa mão, o cigarro na outra. Soltou o cabelo, a medalinha na mão. Riu de si e de seus meros surtos, aqueles tão antigos que nem se lembra quando foi a última vez que os deixou se apoderarem. Fechou os olhos e recitou, utilizando toda a energia restante, aquele poema tão antigo quanto sempre soubera. Enquanto recitava bebericava da garrafa de cerveja, sentindo o líquido escorrer pela garganta, leve, solto, ondulante. Cansou do cigarro, mas deixou-o ali, queimando, apenas para sentir o cheiro da fumaça dançando sobre seu corpo. Lembrou daquela canção que cantava quando estava feliz, riu-se. Onde já se viu: triste, lembrar de momentos felizes. Não fazia um pingo de sentido, mas mais uma vez, nunca fez sentido, nem mesmo para si. Assistiu a morte chegando devagar e impossibilitando um gato na rua. Não moveu um músculo, não se importava, pelo menos não hoje. Fuzilou a noite com um olhar avassalador. Quem

A voz no telefone

O telefone tocou uma, duas, três vezes e do outro lado uma voz diferente, mas conhecida atendeu. Estava tão perdida em pensamentos e barulhos externos e internos que não conseguia raciocinar de quem era a voz. "Quer falar com quem?" - perguntou. Responde o nome da amiga. "Ela não está aqui agora, quem é?". "Mary Anne." a voz responde: "Mary Anne? Quando ela voltar, aviso que você ligou. É o Thomas quem está falando." Ela responde "Quem?", ele: "Thomas". Ficou sem reação. Ele sabia que era ela, tinha certeza agora. A pergunta foi mais uma forma para dizer quem falava. O coração bateu acelerado. Será que era ele mesmo? Existem tantos Thomas no mundo. Mas não, devia ser ele! Só podia ser ele! Desligou o telefone, ainda sem reação. O sorriso se alargou na face. Que saudade. Que saudade. Paula Cristina.

Clichê

Como não acreditar em clichês, quando eu sou fruto dele? Filha do amor, isso é tudo que eu posso me tornar. Não adianta tentar esconder ou fugir da verdade nefasta que sou. Quanto mais fujo do amor, mais eu me perco de mim mesma. É curioso como algumas pessoas entendem o amor como algo sério, duro e difícil. E talvez seja se você busca esse amor como uma forma de garantia de sua felicidade. A questão é que o amor não é garantia de felicidade. O amor é um ato que nasce do servir. Mas não o servir capitalista de fazer algo para receber em troca. Este ato de servir deve ser puro, sem segundas intenções. Você intui a importância de uma ação e age servindo, entregando seu melhor, porque é necessário. Muitas vezes o amor é confundido com sentimento, porque junto da intuição e da ação vem uma paz e uma alegria, que misturadas, trazem um sentimento inexplicável que para cada pessoa terá uma cor, um cheiro, uma sensação e uma lembrança diferentes, que combinados trazem emoções e sentimentos à t